Eu sofro: alguém deve ser culpado por isso, disse certa vez o filósofo alemão Nietzsche. E a psicanalista Maria Rita Khel explica o que ele quis dizer com isso: ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo do que venha a fracassar.
Nos corredores da minha escola, é comum os alunos pedirem “conselhos” sobre qual carreira seguir e qual escolha devem fazer em relação a uma situação que pode afetar suas vidas acadêmicas ou mesmo pessoais. Nunca respondo. Ou melhor, digo a eles que não cabe a mim responder e que o resultado dessa escolha afetará a eles, logo, não posso me responsabilizar por dizer o que eles devem fazer ou não. Quando muito - e essa é minha tarefa como adulto e como educador - cito fatos e dados e indico leituras ou vídeos. Mas dizer o que fazer é uma armadilha para eximi-los de arcar com as consequências do exercício de suas próprias liberdades. E eu não caio nessa armadilha. Já basta o infinito carnê de prestações que devo pagar para aliviar o peso das consequências das minhas próprias opções e atitudes nessa vida.
Percebo - creio que percebemos todos - como o ressentimento tornou-se um esporte muito praticado em nossa sociedade. Apostamos lá no “líder”, no que ele prometeu, no que ele disse ser capaz de fazer, e ficamos só na guarita aguardando as coisas não acontecerem do jeito que foi dito para destilarmos nosso rancor, nosso quase desespero de Narciso contrariado. Recentemente, o ex-presidente, uma espécie de hors-concours do exercício do ressentimento, apareceu em um vídeo segurando uma camiseta em que se lia “picanha”. E ele comentou: olha o que "ele" prometeu pra todo mundo.
Esse episódio talvez resuma melhor do que tudo a tragédia que é essa epidemia de ressentimento, de egos feridos, de indivíduos machucados porque seus desejos não foram realizados e agora, incapazes de análise e reflexão, ocupam suas horas do dia para apontar o dedo para o outro que impediu que o mundo fosse exatamente como eles haviam imaginado.
Há uma brincadeira dos alunos na escola onde trabalho que consiste em pedir para que o professor faça algo diferente da sua tarefa de ensinar. Para alguns, pedem uma selfie; para outros, uma canção; para outros, que deem um pulinho no tablado, e assim por diante. Nada agressivo, nada intrusivo, nada que não pudesse ser feito sem qualquer prejuízo. Mesmo assim, trata-se de uma escolha do professor. Eu, por exemplo, sorrio, brinco um pouco com eles e começo meu trabalho. E é aí que é possível perceber os efeitos deletérios de uma sociedade narcísica. O que era uma simples brincadeira, inofensiva, vai se tornando uma repetição incômoda e, em alguns casos, agressiva. Um aluno, certa vez, interpelou-me e perguntou: "professor, afinal de contas, por que o senhor não pula?”. Outra vez, entre as diversas vozes gritando : "pula, pula", alguém, num tom mais elevado, disse: "pula logo!"
Em um bar, aqui na minha cidade, um segurança pediu a um cidadão que parasse de fumar no recinto ou fosse fumar lá fora. O indivíduo, voltando exausto do trabalho em uma cozinha de restaurante, viu naquela interdição uma violência contra si, homem-trabalhador-cansado-só-querendo-fumar- seu-cigarrinho-tranquilamente. Sacou então das facas que portava e saiu desferindo golpes pra todo lado. Aquelas pessoas ali eram o inimigo, os responsáveis por ele não poder ser inteiramente ele.
Para o ressentido, esse é o mal do mundo: ser cheio de gente incapaz de concordar o tempo todo com as suas escolhas e decisões. E de serem tão infantis e desprotegidos de seus próprios egos que não são capazes de se controlar. Daí dizerem: Ora, prometeu (sic) picanha pra todo mundo, agora entregue! Ou então, nós voltaremos e ensinaremos do que o ressentimento é realmente capaz.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
@profdanielmedeiros