Está na Constituição, logo em seu artigo 3º, que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Lamentavelmente, o Brasil ainda está longe de cumprir a ordem constitucional expressa nesses quatro incisivos que visam, ao final, garantir a todos os brasileiros a condição de verdadeiros cidadãos, com os mesmos direitos, as mesmas oportunidades e possibilidade de vida digna.
Esse princípio fundamental fica limitado ao papel porque o país se mostra incapaz de superar – ou ao menos de reduzir drasticamente – as desigualdades, essas a maior barreira para a construção de uma sociedade verdadeiramente justa.
Poderia ser diferente, se nossos governos enxergassem as atrofias demográficas e econômicas escancaradas pela realidade nacional. Uma rápida análise dos indicadores mostra que São Paulo, com área territorial 30,59 vezes menor que a da soma dos 16 estados das regiões Norte e Nordeste, abriga 21,16% da população brasileira (ante 38,11% do Norte e Nordeste somados), e tem PIB 59% maior que o dos estados daquelas duas regiões. Essa distorção é confirmada pelos números relativos aos sete estados da região Sul e Sudeste, com área 5,07 vezes menor que a dos estados do Norte e Nordeste, população 42,46% maior e PIB 253,27% superior. O Brasil, portanto, está torto e essa situação pode comprometer a segurança nacional e a integridade territorial.
As atrofias sociais também são significativas. A concentração de riquezas é brutal. Em 1960, os brasileiros que compunham a faixa dos 1% mais ricos participavam com 12,10% da renda nacional. Em 61 anos, essa participação mais que dobrou, chegando a 26,60% em 2021. Há dois anos, os 50% mais pobres detinham apenas 10% da renda nacional! Ao longo das décadas, os brasileiros estão empobrecendo, com a classe média minguando e os pobres se aproximando cada vez mais da linha da miséria. A pandemia da Covid 19 agravou o quadro: em 2021, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas, 62,9 milhões de brasileiros (29,6% da população total) vivia com renda domiciliar per capita de até R$ 497,00 mensais. Nada menos do que 9,6 milhões de brasileiros passaram a integrar o grupo dos que vivem em situação de pobreza.
Quadro trágico que levou à necessidade de socorros emergenciais de distribuição de renda, sem, entretanto, buscar-se solução para a raiz do problema. Impossível aprovar qualquer governo das últimas três décadas se o País não foi capaz de erradicar a miséria e a fome, apesar das grandes riquezas nacionais.
Como se não bastasse, os indicadores internacionais evidenciam as atrofias sociais brasileiras. Os resultados das duas últimas décadas são desanimadores. No ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Brasil ocupava a 71ª posição em 2002, caiu para a 88º colocação em 2010 e estava em 84º lugar em 2020. No Coeficiente Gini, que mede desigualdades, escolaridade, renda e oportunidades, o país oscilou entre a 6ª e a 8ª piores
posições no período. Nesses 20 anos, segundo critérios do IRBES, que mede o retorno em serviços oferecidos à população dos recursos dos tributos arrecadados, o Brasil ficou estagnado na 30ª posição entre as nações mais desenvolvidas, apesar de ter a 13ª maior carga tributária mundial. Amargamos também os piores conceitos no PISA, o programa internacional de avaliação de alunos desenvolvido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Entre 79 países avaliados, o Brasil ocupa apenas o 60º lugar em leitura, oscila entre o 72º e 74º em matemática e fica entre a 66ª e 68ª posição em ciências.
Essa situação, por certo, não é obra de um dia e tampouco de um único governo. Ao longo de décadas, foram se somando medidas equivocadas, fruto da ausência de visão estratégica, falta de planejamento, decisões imediatistas e de atos contaminados por interesses eleitoreiros. Um dos maiores erros, ainda vigente, é a tributação excessiva sobre o consumo (de 44 a 46% do total das Receitas Tributárias dos 3 entes Federativos), o dobro da tributação sobre capital e renda (de 20 a 21%), exatamente o contrário do que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, a maior economia do mundo. O Brasil adotou um modelo perverso e regressivo, que penaliza as classes menos favorecidas, obrigado o cidadão a pagar 25% de imposto sobre alimentação, de 35 a 38% sobre itens de higiene pessoal e limpeza, de 40 a 49% sobre vestuário, e de 36 a 38% sobre produtos industrializados de alimentação.
Nesse verdadeiro manicômio tributário em que se transformou o país, o brasileiro trabalha cinco meses do ano apenas para pagar os impostos, sem receber em troca serviços públicos de qualidade. Ademais, ainda sofre com a falta de correção anual das tabelas de Imposto de Renda. A defasagem na tabela, segundo o Sindifisco, já supera 145%, percentual que, se aplicado, elevaria a isenção sobre remuneração dos atuais R$ 1.903,98/mês para R$ 4.665,00/mês, valor muito próximo dos R$ 5.000,00 prometidos na campanha eleitoral pelo atual governo. Ao não fazer a correção, o governo contraria os artigos 150 e 153 da Constituição Federal e aplica tributação indireta. O trabalhador que hoje ganha 4.665,00/mês (90% dos brasileiros) e deveria estar isento, paga na fonte R$ 413,50/mês de IR, valor que lhe faz falta no orçamento doméstico.
Para piorar, nos últimos 20 anos os gastos tributários da União saltaram de 2,0% para 4,3% - 4,5% do PIB. Estima-se que alcançarão R$ 456 bilhões/ano em 2023. Já os estados renunciaram a R$ 127 bilhões/ano, cerca de 1,2 a 1,5% do PIB. São, no total, R$ 583,52 bilhões a menos nos cofres públicos todo ano.
Evidentemente, as políticas públicas alicerçadas em incentivos fiscais, renúncias fiscais e/ou gastos tributários são necessárias. Entretanto, tudo isso somente deveria ser concedido com maior transparência e impessoalidade, com prazos definidos e valores decrescentes ao longo do tempo, e ainda auditados externamente com aferição periódica de seus resultados.
O mais importante é que sua concessão seja condicionada à redução das desigualdades regionais e sociais, como mandam os artigos 3º, 43, 151, 155 e 165 (parágrafos 6º e 7º) da Constituição. Bem ao contrário do que se deu nos últimos 20 anos, com a complacência do Congresso Nacional, do Tribunal de Contas da União e do Ministério Público Federal. Ignorando a Constituição, 62,49% do total dos gastos tributários foram destinados para beneficiários estabelecidos no Sudeste (47,73%) e Sul (14,76%), justamente as regiões mais desenvolvidas do país. Juntas, receberam R$ 285 bilhões por ano. Por outro lado, apenas 28,31%, o correspondente a R$ 129,1 bilhões/ano, foram dirigidos a beneficiários do Norte e Nordeste (16 Estados), as regiões menos desenvolvidas. Os restantes 9,20% foram direcionados para a região Centro-Oeste, que ficou com R$ 41,98 bilhões/ano.
É preciso considerar também que os estados mais pobres ainda são penalizados com a renúncia de impostos compartilhados – IR e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) -, importantes fontes de arrecadação e que representam 48, 71% do total dos gastos tributários. Essa renúncia tira dos três Entes Federativos R$ 222,17 bilhões anualmente. Cabendo aos Estados e Municípios das regiões Norte e Nordeste arcarem com a perda de R$ 63,09 bilhões/ano, relativas a receitas do Fundo de Participação dos Estados, Fundo de Participação dos Municípios, Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste e Fundo Constitucional de Financiamento do Norte, já aplicados os coeficientes dos estados e municípios.
O Brasil nunca conseguirá reduzir as desigualdades regionais e sociais se mantiver esse modelo. É preciso promover o desenvolvimento de todas as regiões do país, corrigindo as distorções atuais, fomentando as vocações locais e ofertando oportunidades iguais para todos os brasileiros, independentemente do local onde nasceram ou vivem.
Necessário alterar o curso, reduzindo drasticamente a tributação sobre o consumo – do patamar atual de 25 a 40% sobre bens para 15%, no máximo (mediante redução simples da alíquota) – abrangendo todos os produtos e gêneros básicos. As perdas com essa redução podem ser compensadas com a elevação ou instituição de tributos sobre capital e renda, por exemplo.
Também é fundamental corrigir anualmente as tabelas do Imposto de Renda, adotando-se o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medida que não seria favor algum, e sim respeito ao trabalhador e justiça social.
Outra medida inadiável é reduzir os gastos tributários da União dos atuais 4,3% a 4,5% do PIB para algo em torno de 1,5% a 2%, retomando o patamar vigente há duas décadas. Essa mudança precisa vir acompanhada de regras rígidas de concessão, cumprindo a destinação constitucional de reduzir as desigualdades regionais e sociais, com prazo de validade, valor decrescente e auditoria externa permanente, além da compensação em caso de renúncia com impostos compartilhados com estados e municípios.
O país precisa de um Plano Decenal de Metas específico para a questão das desigualdades, estabelecendo como fonte de recursos, pelos próximos 10 anos, 30% ou 40% do montante obtido com a redução dos gastos tributários da União. Tal quantia – hoje em torno de R$ 90 bilhões a R$ 120 bilhões/ano seriam destinados a investimentos em infraestrutura, rodovias, ferrovias, portos e aeroportos, e saneamento nas cidades das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, viabilizando-as economicamente e ofertando melhores condições de vida às populações locais e com fortes reflexos positivos na atração de investidores.
É igualmente necessário investimento nas pessoas, por meio da disponibilização de educação de qualidade às populações das regiões menos desenvolvidas. Essa mudança de patamar educacional é possível com escolas em tempo integral, escolas técnicas, universidades públicas e atualização das grades curriculares para adequá-las aos avanços e necessidades do século XXI. Outra medida sensível seria a expansão dos cursos e vagas escolares noturnas, a fim de garantir o acesso àqueles que precisam trabalhar durante o dia.
Paralelamente, o país não pode prescindir do combate efetivo à corrupção e precisa caminhar em direção a mudanças que incluem a retomada da prisão em segunda instância após decisão colegiada; redução significativa da abrangência do foro privilegiado; fim da reeleição para cargos do Executivo, e readequação e democratização, com transparência, dos fundos partidários e eleitoral.
Melhor infraestrutura e educação universalizada e de boa qualidade são, acima de tudo, os melhores caminhos a serem pavimentados com essas mudanças, imprescindíveis para tornar o Brasil uma nação mais justa para todos os brasileiros. Como já alertava o líder sul-africano Nelson Mandela, “a educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”. Nada melhor do que começar por nosso próprio país.
**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br