Quando fui para um Retiro de Silêncio, pensei que seria algo repousante e que me ajudaria a recarregar as baterias, já que não tinha tirado férias no meio do ano. Pratico Meditação há décadas e já fui a um evento que misturava Meditação, Taoísmo e Escuta Terapêutica. Sei que parece complicado o assunto e não é o tema desse artigo. O fato é que fui ao Retiro cheio de moral, achando que iria tirar de letra. Não foi bem assim.
Passo a semana ouvindo e falando com pacientes, no final de semana fico bem feliz de ficar em silêncio com meus livros e canais de streaming. O silêncio e a falta de contato visual com as outras pessoas se revelou mais difícil do que eu imaginava. Mas o principal foi a percepção de que se tratava de uma Jornada de trinta e seis horas de silêncio e de contato absoluto com um mundo sem conexão, sem notícias, sem imagens, sem telas e, sobretudo, sem as coisas que nos mantém ocupados o tempo todo. Talvez essa tenha sido a percepção mais estranha e inesperada. Não havia filme, não havia vídeo do Youtube, não estava escrevendo nenhum artigo, nem bolando a próxima postagem. Há uma doença contemporânea chamada Nomofobia, que é o medo irracional de ficar desconectado da Internet, seja em lugar sem Wifi ou com o celular acabando a bateria. Estava eu, um jovem senhor chegando à sexta década de vida, ficando adicto de Internet e Redes Sociais?
Posso ficar desconectado por trinta e seis horas sem ter uma crise de Pânico, sim, mas o desconforto veio da mudança abrupta do registro de ter um monte de coisas para fazer e ter apenas as horas de Meditação e trabalho corporal enchendo o dia. Não era refrescante nem uma forma de recarregar as baterias. Era trabalho árduo o tempo todo. Quando as atividades se encerraram perto das nove da noite fui voando para o quarto. Tive desarranjos intestinais e fiquei sabendo de outras pessoas que passaram por isso, e a comida da pousada era vegetariana e excelente. Só fiquei em paz quando tive a noção que aquilo era uma Jornada de Transformação, coisa que estudo e pratico em minha vida como Psiquiatra e Psicoterapeuta. Como numa jornada, haveria desvios, atoleiros, incertezas e pneus furados. Mas algo me ajudaria a ir até o fim.
No segundo dia do Retiro, seriam mais umas seis horas de silêncio e Meditação. Foi aí que virou a chave. Uma das práticas que eu fazia de maneira mais mental era a Meditação Andando. A pousada tinha um espaço grande para se explorar e eu tentava sentir cada passo na terra em plenitude. Mas eu parecia esses ocidentais bancando o Iogue, ou fazendo pose de Lótus para as máquinas fotográficas. Foi na Meditação Andando que houve uma mudança perceptual. Eu andava descalço encima das raízes exteriorizadas de uma árvore bonita, bem no meio do terreno. Foi uma sensação de tempo dilatando e de abertura de meu peito. Devo ter ficado vários minutos andando muito lentamente encima daquelas raízes. Não havia mais nenhuma tarefa, nenhuma receita para emitir, nenhum WhatsApp para responder, nenhuma compra para fazer no supermercado. Só o tempo dilatando prazerosamente, até deixar de existir o tempo. Até o tempo e a temporalidade virarem o Não-Tempo.
Vivemos numa sociedade doente sob muitos aspectos, mas talvez a doença mais grave e invisível seja a nossa doença de temporalidade. Nossos Cérebros estão travados no sistema vai-vai-vai dos hormônios adrenérgicos e, quando isso é brecado, por um retiro, uma doença, uma quarentena ou outro desastre natural, a primeira sensação é de um drogado em abstinência. Isso pode levar muito tempo e ser desagradável. Como a desaceleração que sofremos com a Pandemia. O gozo do silêncio demora a aparecer. Mais do que do silêncio. O gozo da lentidão, que permite que o coração se perca e expanda no movimento consciente.
Isso pode representar uma cura em vários níveis. Mas, principalmente, a cura por vivermos alienados de nosso mundo interno, numa cultura que só olha para fora.
Às vezes chego cedo no consultório e passo numa praça onde as pessoas fazem os movimentos lentos do tai chi. Eles não sabem, mas podem estar curando o mundo.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”