Basta olhar no dicionário o verbo abortar e os significados surgem: interromper, não vingar, não se desenvolver. Abortamos os planos para as férias; o general abortou o avanço das tropas no front; o projeto da expansão da empresa foi abortado. A mulher abortou a gravidez.
Firmar um juízo de valor sobre o verbo abortar sem levar em consideração a transitividade que o constitui é sempre, no mínimo, uma precipitação. Se houve aborto, houve uma circunstância: as chuvas, para os planos das férias; a falta de armas, no avanço das tropas; uma crise econômica, na expansão das empresas. No caso da mulher, só ela sabe as circunstâncias de uma decisão dessa natureza.
A lei estabelece algumas das muitas possibilidades que levariam uma mulher a decidir pelo aborto: a violação da sua dignidade, no caso do estupro; a ameaça da sua existência, no caso do risco da gravidez para a sua vida; a ausência de vida ou de possibilidade de vida do feto, no caso da anencefalia.
Há, porém, tantas outras possibilidades. Mas só as mulheres podem dizer, diante do peso e da força das circunstâncias, se é caso de interromper, não desenvolver, não deixar vingar o feto em seu ventre.
Toda interrupção tem um custo: do lazer, da vitória, do lucro, de uma possível nova vida. Por isso, toda decisão implica uma perda necessária. Resta saber se a perda pode ser assumida, diante das circunstâncias da decisão tomada. E decisões podem ser acertadas ou erradas. O cálculo do acerto e do erro é medido pelas consequências diferentes das imaginadas no momento da decisão. Aqui reside o argumento mais forte dos que rejeitam o aborto do feto: a irreversibilidade do resultado. Mais uma vez, só à mulher que aborta cabe a responsabilidade por essa medida e por carregar essa história em sua vida. Ninguém é afetado por isso na dimensão em que a mulher é. Por isso, nenhum outro sentimento se sobrepõe ao de quem decide essa interrupção e ninguém pode almejar ter mais importância ou querer ter protagonismo maior nessa narrativa.
"Mas, trata-se de uma vida", retrucam os que se interpõem à ideia de deixar para a mulher a decisão de interromper a gravidez, sem que isso seja ilegal, perigoso ou vexatório para ela.
Esse é o nó que precisa, urgentemente, ser desatado: quando a vida torna-se um bem juridicamente protegido? Quando é possível dizer “agressão à vida, ameaça à vida, proteção da vida”? Quando há uma vida assim considerada para efeito de tutela do Estado?
Toda perda implica uma responsabilidade: o pai que cancela as férias precisa se explicar aos filhos; o general precisa justificar ao Alto Comando; o empresário, aos seus sócios. A mulher, diante da perda de uma outra vida… Mas aí é que está a questão: trata-se de uma vida cuja perda é imputável?
Para essa delicada pergunta há uma resposta religiosa e outra laica: a primeira provém da tradição e a segunda, da Ciência. Uma considera que há vida desde o momento da concepção; outra entende que só há individuação, portanto, vida tutelável, com o desenvolvimento do sistema nervoso, cujo primeiro sinal de atividade se dá por volta da décima terceira semana de gravidez. A vida, para efeito da proteção do Estado, muda em um caso e em outro caso. O aborto, para um caso é um crime. Para o outro, não. Essa é a questão central. Ou não, se lembrarmos que o Estado brasileiro é laico.
Já é pacífico para a lei e para os tribunais que a morte legal, ou seja, aquela na qual cessa a proteção do Estado sobre a pessoa - podendo, por exemplo, retirar seus órgãos ou enterrar ou queimar seu corpo, além de dispor de seus bens - dá-se com a completa e irreversível parada de todas as funções do cérebro. Ou seja, o parâmetro para o fim da vida é o término das atividades cerebrais. Vida é vida cerebral, diz a Ciência. Daí o Supremo Tribunal Federal ter decidido que, no caso de anencéfalo, a interrupção da gravidez é legal. Como disse, na ocasião, o ministro Marco Aurélio, relator do caso: "Anencefalia e vida são termos antitéticos”. Ou seja, sem atividade cerebral, sem vida.
Cabe aos legisladores ou aos guardiões da Constituição a tarefa dessa definição sobre o começo da proteção legal da vida para descriminalizar ou não o aborto de feto, devolvendo para as mulheres, sem medo de punição, a decisão que sempre lhes coube primariamente.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
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